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quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A LEGIÃO ESTRANGEIRA (CLARICE LISPECTOR) - BREVE ANÁLISE

 

Antes de ir à análise do referido conto, gostaria de destacar que Clarice Lispector (1920 - 1977), nascida na Ucrânia, mas criada no Brasil, é minha escritora nacional favorita. E tenho muitos motivos para isso. 

Primeiramente, porque ela é uma das autoras que mais tratam do universo feminino com verossimilhança. Clarice sabe o que é ser mulher, não apenas no sentido biológico, mas na alma. Quem tem a feminilidade propícia entende o que falo. Ser mulher não é fácil. Traduzir esse universo, então, é muito complexo. Nem santas, nem demônios, mas pecadoras. Clarice traduziu o universo feminino de forma brilhante, precisa, perfeita. E o que acho mais interessante em toda sua feminilidade e tradução do ser feminino é que Clarice morreu de uma doença exclusivamente feminina: de câncer no ovário. É uma das informações que creio que, enquanto eu tiver memória, eu vou lembrar.

Segundamente, porque, por meio de Clarice, eu conheci e me familiarizei melhor com a disciplina de Teoria Literária, especialmente, sobre tipos de narradores, que você pode encontrar muitos trabalhos acadêmicos analisando esse aspecto nas diversas obras da autora; mas, primordialmente, na questão do discurso indireto livre, que, até antes de estudar Clarice eu não conhecia, e que é um recurso que ela utilizou em todas as suas obras e que eu acho genial; uma forma de trazer o leitor para o âmago dos personagens. Se você quiser saber mais sobre isso, há muitos trabalhos acadêmicos sobre o assunto na internet também.

Em terceiro,- e não querendo me estender mais, - porque Clarice Lispector é a maior inspiração que tenho em escrever narrativas. Eu a considero uma escritora perfeita. Quem não? E, ainda que eu não atinja nunca sua perfeição, pois preciso aprender muito sobre tudo nessa vida, esse é o objetivo: narrar como Clarice. 

Isto posto, vamos à breve análise de "A Legião Estrangeira", que você já deve ter lido.



O conto inicia falando de um pintinho que a família ganhara e que não sabia o que fazer com ele. Narrado em primeira pessoa, a narradora fala que ela, o marido e os filhos ficaram observando o animal sem saber o que fazer com ele, e compara o pinto aos sentimentos que “são água de um instante”. Aborda, então, sobre como a bondade é despertada em cada uma das pessoas presentes no momento:

 

A meu marido, a bondade deixa ríspido e severo, ao que já nos habituamos. Nos meninos que são mais graves, a bondade é um ardor. A mim, a bondade me intimida. (p.97)

 

Esse episódio faz com que a narradora-personagem se recorde de uma outra família que esteve presente em sua vida e que, como ela afirma: “mal os conheci”.  Mas esse “mal os conheci”, não significa que ela não tenha tido contato com aquela família, já que logo ela diz: “Diante do mesmo júri ao qual responderia: mal me conheço”.

Então, ela começa a narrar a história dessa família, em particular da filha do casal vizinho, chamada Ofélia. A família dá nome ao conto, pois, segundo a narradora, eram "trigueiros como hindus", de "olheiras arroxeadas" e "boca fina". Os pais, eram muito arrogantes e não permitiam qualquer tipo de aproximação. A filha, de oito anos, pelo contrário, passava horas na casa da narradora, falando o que ela devia ou não fazer, porque "essa, a boca 'fina, que assemelhava-se a um corte' falava".

Percebemos que há uma antipatia entre a menina e a narradora; que na verdade elas se toleram: a primeira, porque tinha muito a ensinar à outra, e a segunda porque era uma forma de afrontar a mãe da menina.

 

Ofélia, ela dava-me conselhos. Tinha opinião formada a respeito de tudo. Tudo o que eu fazia era um pouco errado na sua opinião. Dizia, ‘na minha opinião’ em tom ressentido, como se eu devesse ter lhe pedido conselhos e, já que não pedia, ela dava. (p.103)

 

Ofélia era um adulto “em forma de criança”.

Um dia, conta a narradora, que trouxe um pinto da feira para os filhos, e que a menina veio visitá-la e, ouvindo o barulho do animal, quis saber do que se tratava:


— É o pinto.

— Pinto? Disse desconfiadíssima.

— Comprei um pinto, respondi resignada.

— Pinto! Repetiu como se eu a tivesse insultado.

— Pinto. (p.106)


Esse episódio é o que caracteriza na Teoria Literária a epifania, que é um fenômeno na qual uma personagem, a partir de algum objeto, ou pessoa, ou animal, passa a ver a vida de outra maneira, olhando para seu interior.

A visão que Ofélia e a narradora têm do pinto é uma epifania para as duas. No caso de Ofélia, porque ela passa a agir como criança. E já não tem mais respostas para tudo, ao contrário, está cheia de dúvidas. Primeiramente, sente inveja da outra que possui aquele pinto: “olhou-me rápida, e era a inveja, você tem tudo, e a censura, porque não somos a mesma e eu terei um pinto, e a cobiça – ela me queria para ela” (p.106). Nesse trecho a narradora coloca sobre a menina todos os sinais da imperfeição, inveja, cobiça, para mostrar à menina, que sabia muito mais de muitas coisas que ela, que também não era Ofélia perfeita. Ofélia era uma criança que, na verdade não sabia nada da vida, mas desejava descobrir.

No caso da narradora, porque ela vê na menina como uma criança e enxerga a si própria como a adulta, já que, até então, os papéis estiveram invertidos. Diante disso, Ofélia passa a conversar com um certo recato, e a narradora a responder-lhe autoritária:

 

Com alguma vergonha notei afinal que estava me vingando. A outra sofria, fingia, olhava para o teto.

— Você pode ir para a cozinha brincar com o pintinho.

— Eu...? perguntou sonsa.

— Mas só se você quiser.

Sei que deveria ter mandado, para não expô-la à humilhação de querer tanto.(...) Mas naquele momento não era por vingança que eu lhe dava o tormento da liberdade. É que aquele passo, também aquele passo ela deveria dar sozinha. (p.108)

 

Então, notamos aí, que a narradora é uma importante mediadora entre a menina e o pinto. O pinto pode ser entendido como uma metáfora para vida. Nesse caso, a menina estaria indo ao encontro de uma vida que ela não tinha, mas percebeu que a vizinha sim. Por isso, o desejo de ser a outra. Ofélia com toda sua sabedoria herdada dos pais, não tinha vida própria, pois vivia, agia e pensava como adulto. E aquela era a hora de voltar-se para si.

Assim, a menina vai brincar com o pinto. Após algum tempo volta e vai embora. A narradora vai até a cozinha e percebe que o animal está morto.

Encerra-se aí o  período da epifania para a menina. Ofélia matou aquela nova vida que lhe foi oferecida e voltou para casa, local onde se centrava, a fonte de sua sabedoria pronta.

A narradora tentou alcançá-la inutilmente, gritando que “às vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro! A gente não ama bem (...).” (p.110). Percebemos, então, que a epifania continua tendo efeito na narradora que descobre amar aquela criança, irritante em seus conselhos, em suas colocações inoportunas, mas a amava.

Assim, volta-se para o início do conto onde há “o pinto de hoje”. É mostrado um movimento cíclico: o pinto de ontem e o de hoje, a mesma água é outra, a vida se renovando a cada instante.

Clarice é ou não genial?


Maíra Vanessa


REFERÊNCIA

LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.